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segunda-feira, 14 de março de 2011

Histórias...

Meu padrinho Padre Cícero




Conciliador, ele foi acusado de conivência com bandidos e cangaceiros. Político, fez acordos com os poderosos coronéis, foi prefeito e até enfrentou uma guerra, em 1914. Hoje, é adorado por milhões, como o santo popular do Nordeste
por Xico Sá

Uma longa fila de beatas segue lentamente, arrastando-se sobre chinelos de couro, para receber a hóstia sagrada das mãos de um sacerdote de pele muito branca, cabelos loiros, miúdos olhos azuis – olhos mais apertados ainda sob o sol do Cariri – , nariz recurvado, um “galego” como muitos do sertão do Nordeste – baixinho, 1,60 metro, também como a maioria das criaturas da nação semi-árida. Tudo corria no mais rigoroso silêncio e dentro da rotina de todas as sextas-feiras naquela capela, quando era celebrada a missa em honra ao Sagrado Coração de Jesus. A folhinha do calendário marcava 1º de março de 1889.

Tudo sossegado naquele dia. Pelo menos naquela vila. Em toda a região, no entanto, o tempo era de seca braba, numa terra de latifúndios e cercas de arame. Junto ao cheiro da pólvora do arcaísmo queimavam-se também as velas fortes de um fundamentalismo marcado por cangaceiros pré-Lampião e outras tantas legiões sebastianistas – a eterna espera do salvador dom Sebastião, rei de Portugal que desapareceu para nunca mais voltar no ataque aos mouros em 1578 – que assombravam os sertões (e teria, na guerra de Canudos, em 1896 e 1897, seu exemplo mais gritante).

Tudo sossegado naquele dia. Até que uma lavadeira batizada Maria Madalena do Espírito Santo de Araújo, de 28 anos, moça solteira, uma das primeiras da fila de beatas, se estrebucha no chão, aos pés do padre. A hóstia que acabara de receber se transforma em sangue, tingindo toda a sua roupa branca. O “fato extraordinário”, como tratou a imprensa na época, se repetiria, segundo os relatos e testemunhas, por mais 47 dias. A partir do acontecimento, o padre Cícero Romão Batista, que celebrava a missa, iniciava a sua trajetória que culminaria com a fama de santo milagreiro, posto que conquistou imediatamente por aclamação popular de milhões de nordestinos.

A voz do povo, no entanto, não foi a voz do Vaticano. Acusado de fomentar o fanatismo e forjar falsos milagres, padre Cícero, a partir daquele momento, seria alvo das forças da Inquisição, responsável por comandar as investigações sobre o ocorrido com a beata Maria de Araújo. Ignorando as dúvidas da Igreja, multidões acorreram para Juazeiro, pouco mais que um amontoado de casas próximas ao município de Crato e perdida no meio do vale do Cariri, no sertão do Ceará. Por conta da hóstia ensangüentada, as altas autoridades da Igreja Católica cassaram os direitos do sacerdote e posteriormente o excomungaram. Mas pouca gente soube ou se importou com isso. Do final do século 19 até 1934, quando morreu, aos 90 anos, cego e muito alquebrado, Cícero pregou suas idéias, liderou a comunidade que se avolumou a sua volta, fez política e entrou para a história.

A MECA DO CARIRI

Hoje, Crato e Juazeiro são cidades emendadas, quase não se percebe quando se sai dos limites de uma e se entra na área da outra. Mas em 1872 foram necessárias três horas de viagem em lombo de burro, para o jovem padre vencer a distância que separava sua terra natal do povoado de Juazeiro. Menos de dois anos depois de ordenado, ele chegava para ocupar a pequena capela, onde seria o pastor das poucas almas que por ali resistiam. Cícero tinha então 28 anos.

De seus primeiros anos como vigário, o que se sabe é que ele adotou medidas moralistas. Naquela época, naquele lugar, era comum que o pároco tivesse grande influência na vida das pessoas, sobretudo na conduta social. “O padre Cícero proibiu as rodas de samba e o consumo de cachaça e combateu a prostituição”, exaltou, em 1924, o editorial de O Rebate, um periódico de Juazeiro.

Tudo mudou em 1889, quando o suposto milagre teria acontecido. Juazeiro passou a receber gente de todo o Nordeste. Os romeiros iam em busca de um milagre e encontravam, ao menos, consolo. Suas motivações talvez não fossem tão diferentes daquelas que levam atualmente quase 1 milhão de visitantes à cidade, todos os anos.

“Aqui é mesmo a terra santa, a Nova Jerusalém, o lugar para onde todos correm para rezar ou morrer”, diz Pedro Ponciano da Silva, de 31 anos, um dos tantos pregadores que fazem sermões ao pé da estátua do padre Cícero.

Assim, a população da pequena vila cresceu além do que as precárias estatísticas da época conseguiam registrar. Nos rastros dos religiosos, vinham migrantes, fugitivos da seca, desocupados e mendigos. Aquele povo todo reunido atraía a atenção da Igreja e das autoridades. Com a República (proclamada no mesmo ano) eles haveriam de se tornar eleitores.

NA TERRA DO SOL

Ao contrário da sorte de Canudos, onde o também cearense Antônio Conselheiro não se valia das manhas do jogo político dos coronéis e pregava contra o diabo na terra do sol, Juazeiro tinha no padre Cícero um conciliador de mão cheia, capaz de acolher os miseráveis que chegavam à cidade e de negociar com os fazendeiros. Para os primeiros, que encontravam nele um refúgio contra a fome durante os períodos de seca, tornou-se o padrinho, o “padim Ciço”. Para os segundos, foi um negociador competente, responsável pelo “Pacto dos Coronéis”. Assinado em 1911, o acordo entre os grandes latifundiários e políticos conservadores visava a permanência da família Acioly, que mandava no Ceará desde 1877, no poder do estado. Naquele mesmo ano, a vila se tornaria o município de Juazeiro do Norte e o padre Cícero seu primeiro prefeito.

Mas, fora dali, Cícero estava longe de ser um consenso. Em tempos de governadores nomeados, o presidente Hermes da Fonseca ignorou o pacto regional e escolheu Franco Rabelo para governar o Ceará.

Uma rebelião na Assembléia Legislativa, em Fortaleza, rejeitou a indicação no primeiro momento. Mesmo assim, Rabelo tomou posse, em ato que passou por cima da Constituição, que exigia o referendo da Assembléia. A ilegalidade do mandato dava brechas para que os adversários investissem na tentativa de derrubá-lo. Em uma dessas manobras, Floro Bartolomeu, eminência parda do padre Cícero, decretou a criação de uma Assembléia Legislativa paralela em Juazeiro, com o desejo de virar governador. Não obteve êxito, esbarrando na vontade de Hermes da Fonseca.

O jornal mais importante do país na época, o Diário de Pernambuco, também desconfiava das intenções do padre Cícero e afirmou, em 1913, que o religioso cearense provocaria, mais cedo ou mais tarde, “o rompimento grave da ordem pública”. Para o historiador Ralph Della Cava, da Universidade de Colúmbia, nos Estados Unidos, autor de Milagre em Joaseiro (assim mesmo, com a grafia antiga), as elites litorâneas interpretaram mal o homem e a situação. “A causa do padre não era uma revolução social, mas a redenção individual de cada um. Ele era um Messias tímido a quem Deus confiara a conversão dos pecadores. Súbita e involuntariamente, atribuíram-lhe o papel de arquiconspirador.”

GUERRA SANTA

No final de 1913, as diferenças entre a política estadual e a local desembocaram num confronto armado. Legiões de fiéis de todos os grotões do Nordeste, que já habitavam a nova cidade, montaram barricadas para enfrentar tropas do governador Franco Rabelo, no episódio que ficou conhecido como “Guerra de 14”, ou “Sedição de Juazeiro”.

O conflito começou no dia 20 de dezembro quando as tropas de Rabelo, com cerca de 600 homens, chegaram às imediações de Juazeiro, cidade que já tinha uma população de aproximadamente 30 mil pessoas. Pelo menos 10% dos habitantes, sob o comando de Floro Bartolomeu, que ainda convocou cangaceiros de outros municípios para ajudá-lo, viraram soldados do padim Ciço, mesmo que as armas, a maioria rifles e espingardas de baixo calibre, não fossem suficientes nem mesmo para mil juazeirenses.

Os desarmados ajudaram na obra fundamental para a vitória do padre Cícero: a escavação de uma vala de 12 palmos de largura por 10 de profundidade cercando toda a sede do município. O buraco e a barreira de terra das escavações impediram que as tropas de Fortaleza, com ajuda de bandos do Crato, se aproximassem do alvo inimigo, o que facilitou bastante no triunfo. Mesmo dispondo de dois canhões, o exército de Rabelo gastava munição à toa. A guerra se estendeu até o dia 22 de fevereiro, mas nas últimas duas semanas apenas um destacamento policial de 60 homens do Crato mantinha-se firme na luta contra os juazeirenses. O grosso das tropas do governador havia abandonado desde o final de janeiro o campo de batalha.

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